domingo, 2 de novembro de 2014

Veleiro







Veleiro,
cigano de mares distantes
Quer contar tua história?
Teu roteiro,
Teu destino,
Teus dias de glória?
As tormentas gigantes,
as mordidas do mar...
Qual é teu caminho?
És intenso.
És sozinho.
Tu vai.
Tu vem,
bem devagar...
Há nada no porto, um vazio,
Saudade?
Aos poucos surge a imagem
de um mundo de velas,
entre barcos e sonhos.
Pois tu, veleiro,
trás nos olhos,
estranhas paisagens,
dos mundos gravados na alma.
Veleiro valente.
De mares bravios.
Sabor de onda, em suspiros.
Abre caminhos!
Até onde, tu cortas o mar?
Veleiro brioso.
Um cigano, sem lar...
Minha alma é um veleiro de sonhos,
Uma procissão nas noites, e nos dias...
O poema d’água.
Tormentas gigantes,
onde jamais ouve antes,
navegar.

Lucio Lauro B. Massafferri Salles
em parceria com Lauro Passos Salles Filho.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

A Luta Antimanicomial continua - 18 de Maio - 2013







          Um viva também à saudosa Nise da Silveira, generosa e geniosa e genial; incorruptível. Milhares de nós devem à coragem e ao desprendimento dela (para além de suas próprias formações em saúde) a existência de uma pequenina chama de esperança, que ainda ilumina as trevas deste sintoma social que atende pelo nome de "exclusão pela loucura".

domingo, 16 de setembro de 2012

Liberdade -pai e filho à quatro mãos.




          Este pequeno poema foi composto a partir do encontro com uma carta escrita por meu saudoso pai, Lauro Salles, carta esta datada de 1942, quando ele teria 19 anos de idade. Homenagem então, in memoriam, ao querido médico, professor e poeta.

Liberdade


in memoriam, Lauro Salles.


Disseram-me certa vez
que meus versos eram livres de mais,
Não obedecem à técnica,
De métricas perfeitas,
Há fugidio ritmo, disseram.
Temi, por ser assim em tanta distância de meu pai Homero.
Criador dos versos mais belos.
Mas na verdade, o que mais temi,
foi que tivessem dito também,
Que eles, versos meus, espelhavam, como francas janelas o fazem,
Minha alma livre e descompassada.
Minha alma alegremente desritmada, esconsa...
Obstinada e fiel à mais pura destinação da liberdade!
Temi que dissessem que minha alma é    livre.
Sim, livre.
Livre como os versos que escrevo.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Os três ou "porque Platão fingiu"





Os três ou “porque Platão fingiu”

Lucio Lauro Barrozo Massafferri Salles
In memoriam Lauro Salles


Entre as sombras sem cor, d'uma sala indiscreta,
Reuniram-se, os três:
O músico, o pintor e o poeta...
"Oh deus, sou o mais infeliz, desbeirado d’amor", o músico dizia...
"Pois, se há beleza na dor, minha dor não tem.
Sou forma de tristeza, d'um Noturno de Chopin...!"
"Muito mais infeliz sou eu..." Soluçava o pintor...
"Infinito mal, sem remédio, o eterno padecer sem cura,
Como posso revelar, na alegria da cor, a minha desventura?!"
O poeta reclinou-se... afastou da memória uma lembrança amada...
As lágrimas caíram...
E ele não disse nada...


quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O caramujo e o deserto




 

O caramujo e o deserto

Lucio Lauro B Massafferri Salles


Dei de cara com uma estranheza, ainda novo. O primeiro a saber da bizarrice foi parceiro caramujo.
Amigo fiel, morador da ilha amada, Caramujo a tudo ouvia. Veio do mar, disseram.
Ele só se dizia do barulho das águas, mas escutava como ninguém.
Encosta ele na orelha, filho... Dizia mãe. Que as ondas batem juntinho de ti.
Pois, descobrindo que sendo bom escutador, Caramujo era imitador de ondas. Disse a ele que achava ter gosto em torcer palavras.
Notei isso, primeiro, porque falava só. Depois porque gostava de escutar de lado.
Adulto é danado para palavrear enviesado, torto, esconso. Língua oblíqua.
Havia uma professora na ilha que dizia, as grandes amizades influenciam a gente. Nas escolhas, erros, amor e profissão. Descaminhos, o que é melhor.
O amigo só falava que nem mar. Na ilha, era um canto de oceano.
Decerto que às vezes mais alto, mais baixinho, igualzinho. Conversa só, ensina a gente, porque com muita sede é que se faz miragem! Miragem é coisa trocada. Perfeita. Vista do contrário. Basta querer, como dizer que não há oásis.
A água vai tá no contrário, sim, do que dá na vista.
Pessoas são desertos, e assim é também com palavras.
Caramujo ensinou que arte de orelha constrói mundos.
Basta chegar perto, escutar.
O som é sempre úmido.
Relento do mesmo no outro.


quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Poema "Coração da Areia"



Coração da Areia

Autor: Lucio Lauro B Massafferri Salles



Na franja do mar deixei pegadas n'areia.
Meu coração deseducado do nunca correu quando pé molhou.
Nova intimidade é trecho de susto. Costuma ir na boca, coração.
Toque de grão difere de mar, mesmo misturados.
Imagino o primeiro a se fazer em fôrma-pé.
Franja de ilha é casamento. Um não fica sem o outro, um minutinho sequer.
Basta cunhar água que tudo se dissolve. Se descolassem, ilha não era.
Em sendo ali, cortejo de oceano, areia é donzela.
Sempre branca. Branquinha.
Casa de branco? Casa, sim. E mar de azul.
Peixe ignora essas coisas.
Só beija borda e volta. Bobo não é.
Bala de peixe é anzol, de vez em quando pula um.
Num há pôr-de-sol mais puro que o da ilha.
As puridades compõem o espírito.
Seduz as ostras.
Danada rebelião de mariscos.


Lucio Lauro M Salles

domingo, 8 de julho de 2012

O relógio e o sol



O Relógio e o Sol [em dois tempos]


I  ir vir

Autor: Lucio Lauro B Massafferri Salles


No início era sol, e depois noite.
Os homens, curvados, eram ainda não-homens.
Notavam que tudo se movia.
Uma ora, o breu. Escuro.
Em outra, o claro, dia.
Seu único saber? Que tudo mexia. Tudo movia.
Ia pra frente, ia pra trás, fosse noite, fosse dia.
Se relampejava, chovia.
Engravidava, nascia.
Nascia. Morria.
Tudo tinha sentido, mesmo sem nenhum. E isso bastava pros homens.
Pois de porque em porque, tudo ia. Bem, mal, mas ia.
E em repetência infinita, de luz e escuridão,
surgiu com curiosidade animal, curvada.
No caso, desejo de mover o mover.
Só mesmo homem pra querer fazer fazer, desfazendo que é feito, sempre no mesmo.
Mesmice é coisa que repete sem parar.
É dia. É noite.
É dia. É noite?
Como nublava, na ocasião saber era não todo. Era nada.
De desespero veio nuvem,
que além de fazer chuva, em sol encobriu.
Não se sabia se noite.
Não se sabia se dia.



II a sombra da ora


Aos homens, restava por agá na ora.
Mesmo mudo, faz tempo.
Mais forte domina o fraco.
Mulher dominava homem, de letra muda na frente...
Só lhe restava força. Mas força não domina.
Que lhe encobria?
Dos homens orava, ora de pôr agá.
Pingos nos is do movimento!
Dominar o mesmo!
Parar a coisa!
Ou pelo menos fazer como tivesse parado.
Crença de poder, sempre foi mal de homens.
Foi primeira vez que brincaram de deus.
Como criança que pára jogo, quando move pro lado errado.
Ir, vir, passou à medida. E não por acaso, foi pela sombra que idéia de criar régua pro mover surgiu. No claro, dia, no sol, olhando o rabo em sombra de areia, desencobria. Orava-se! Da luz, se fez. Movimento se media. Pedaço de treva que anda. Sombra, disfarce, dissimulação. Cópia não; vestígio!
Cria assim, que deu nome de tempo. O filho senhor. A ele pai homem se curvou. Mas por respeito.
A medida de si, em movimento, sombra feita de sol.
Assim como de costela, se disse vir Eva.
Foi de umbigo humano que se fez o tempo.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

De Crianças e Bichos




De Crianças e Bichos
Autor: Lucio Lauro B Massafferri Salles


Sobre pequenos que conversam com bichos. Eles não sabem do que dizem. Não se trata de saber. É amor. Nem de onde. Nem pra onde. Nem do que, é o que parece. Amor não parece. Amor é. E dos bichos, nem o que escutam. É certo que escutam. Mexem orelhas, ao menos. Os que os escutam dizem que a conversação é por si só bastante amalucada. Fala-se pra um. Que não entende do que se fala pra outro. E tome de gargalhada. Fala sem entendimento é coisa de bicho burro. De burro bicho, ou de gente doida, já dizia um antigo e solitário sábio. De um a outro, em prosa ingênua, bem farta de carinho. Não pode carecer de razão ao final. Onde há carência é porque farta algo. Do que falam então? Há um e outro, em gente, bicho, amor. Comunicam-se então? Horas a fio, de riso. Colo com direito a um coça-barrigas. Estrangeira relação. Gatos e cães, sim, são capazes de horas a fio de cavaco com pequenos. Pequenos intervalos em chamego. Pequenos seres que brincam. Pequenos amores eternos. Muito ternos. De criatura pequena, pra criatura pequena. É-ternura, não acaba nunca. A razão então, se perde bem ali, assim como Músicos de Bremen inspiram a crer que gatos são atores de alma, burros flauteiam, cães mandam, ao invés de obedecer. O artista e o chefe. Pequenos não se dizem donos. Tomam posse só quando crescem. De crianças e bichos, artífices de amor.

terça-feira, 6 de março de 2012

Mulheres e Mães, na poesia de Mário Quintana - A força das mulheres


 
      Com Mário Quintana:


Mãe... São três letras apenas
As desse nome bendito:
Também o Céu tem três letras...
E nelas cabe o infinito.
Para louvar nossa mãe,
Todo o bem que se disse
Nunca há de ser tão grande
Como o bem que ela nos quer...
Palavra tão pequenina,
Bem sabem os lábios meus
Que és do tamanho do Céu
E apenas menor que Deus!


Lucio Lauro Barrozo Massafferri Salles

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Das lendas sobre Nise.




    Mesmo só tendo convivido com Dra Nise da Silveira quando ela já estava bastante idosa, na cadeira de rodas, pude desfrutar o prazer de ouvir de sua própria boca histórias deliciosas. Certa vez, com a Casa das Palmeiras abarrotada de estagiários, colaboradores e clientes, contou-nos com detalhes como foi a convivência com os colegas na Faculdade de Medicina da Bahia, onde se formou em uma turma com mais de cem alunos, sendo ela a única mulher. Pré-conceitos e paradigmas? Baixinha, nordestina, médica [imaginem uma médica, no Brasil, em meados da década de 20!] e com personalidade forte, foi sempre muito respeitada, na faculdade, fazia questão de afirmar. O mesmo já não ocorreu posteriormente, no Rio de Janeiro, onde viveu inúmeros confrontos e perseguições, por parte de "colegas psiquiatras". Na verdade, pior do que isso, Nise chegou a ser presa, acusada de ser comunista [e a querela se deu no interior do Hospital Psiquiátrico da Praia Vermelha-atual UFRJ]. Nise, de início, pensou em estudar Neurologia e jamais negou, em lugar algum, o amor e o respeito pela Obra de Freud. Até isso compartilhou com o amigo Jung, cuja obra dedicada às imagens do inconsciente tanto lhe inspirou por possibilitar desenvolver laços terapêuticos não-verbais com os pacientes esquizofrênicos. Discordar, para ela, fazia parte do processo dialógico comum aos que se espantam com o não-saber sobre a vida.
    No mesmo dia em que nos contou sobre os estudos na Bahia, fez questão de frisar para todos os presentes que o espanto (o Thaumázein dos antigos gregos], ou a capaciade de se espantar com as coisas, com o mundo, com as pessoas, com o desconhecido, era o que fazia um pesquisador da alma se manter vivo, com desejo de ir adiante e suportar o "não-saber". Nise não apreciava muito pessoas que associavam "o saber" com a "linguagem rebuscada". Desenvolvia uma técnica de falar aonde pouco se escutava a palavra "eu". Ao invés de dizer: "Eu penso que isso é assim, porque eu acho que....", dizia simplesmente: "Penso que isso é assim, porque parece que....". A diferença pode ser quase nenhuma para muitos, mas com o tempo percebia-se que, na verdade, tinha uma escuta notável, talvez por praticar nos detalhes a difícil arte de "desinflar o ego". Uma das variadas lendas que existem a seu respeito é a de que odiava Lacan [psicanalista e pensador francês que se notabilizou por, entre outras coisas, re-pensar Freud sob à luz da filosofia]. Nesta mesma noite - da narrativa sobre a faculdade de medicina - Nise, após perguntar quem, dos presentes na Casa, já havia lido Freud, tocou no tema que virou curiosa controvérsia para muitas pessoas depois: "Quem, aqui entre vocês, já leu Lacan?". Foi esta, exatamente, a pergunta...Diferentemente da pergunta anterior, sobre Freud [aonde aproximadamente metade do grupo acusou alguma leitura sobre], esta segunda pergunta sobre Lacan promoveu um longo silêncio. Creio que alguns de nós já havia lido [eu era um, mas havia lido pouco e tinha tido dificuldades de compreendê-lo], mas por motivos diversos, ou não, ninguém se manifestou. Diante do silêncio, Nise se pronunciou: "Nenhum de vocês leu nada de Lacan?...que pena [abanou a cabeça, reclinando-a ligeiramente para trás], porque eu li e não entendi nada, queria alguém que já tivesse lido e que pudesse ler junto comigo para ver se consigo entendê-lo [e soltou uma deliciosa gargalhada]. Nise adorava ler e era uma pessoa erudita [sem soberba], jamais odiaria um autor porque ele não sabia se expressar com clareza na escrita, ou porque não tinha uma escrita poética, ou porque, por algum outro motivo, não produziu um texto simples de ser lido. Seu grande fascínio era pelos afetos produzidos nas relações entre as pessoas, pelas boas idéias, pela criação com o "pensar o ser em constante movimento". Foi com Jung que encontrou eco para boa parte das idéias desenvolvidas nos ateliês de expressões artísticas - utilizados no tratamento da loucura - onde as imagens da alma surgiam em profusão, sob inúmeras formas de mandalas. E foi com Freud que aprendeu a amar os mistérios do inconsciente, além da necessidade de se livrar a "terapêutica do espírito", das mãos exclusivas da Medicina.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Sobre Miguel de Sacramento, por Dona Maria.




Das intermináveis memórias da Casa das Palmeiras, esta foi contada por "Dona" Maria, escultora e cozinheira de primeira linha, amiga de doutora Nise da Silveira [creio que ela, Maria, ainda é o grande acervo, vivo..., das memórias de Nise, mas, enfim], uma espécie de anjo da guarda, ou guardiã da loucura, para todos que ali habitaram.
Sobre o [Miguel de]Sacramento, antigo cliente [início da década 90] que já se foi, um grande figurinista e roteirista de teatro; contou-me, Maria [12/12/2006]:

“- Meu filho...o Sacramento estava morando sozinho, aqui perto, e ficou um bom tempo sem sair do quarto, uns quinze dias, não recebia ninguém e não queria falar com ninguém. As moças da Casa (Casa das Palmeiras) iam lá para vê-lo, para convencê-lo a tomar banho, comer direito...ele estava doente. Até o dia em que me pediram para que eu fosse lá, pois ele não queira falar com mais ninguém...
Fui e vi ele na cama, falei pra ele: -  levanta daí meu irmão, vai tomar um banho e se vestir que estão querendo te levar para um hospital para te cuidar, você não pode ficar sem comer e sem tomar banho !!!

Sacramento me disse:- eu to morrendo Maria, me deixa ir...

Falei então:- Levanta e toma um banho, se veste e vai no hospital pra te examinarem, se vai morrer , morre de outra maneira homem!
E ele foi...e “foi-se embora de vez”, ficou 15 dias no hospital e morreu. Estava muito fraco, disse Dona Maria, rindo, enquanto escorria uma lágrima dos olhos, e completou:
- ele morreu que nem um “Rei Africano, meu filho...cercado de mulheres indo ver ele [sonora e inesquecível gargalhada]!!!!!

Dona Maria pintou imagem com palavras, sobre Sacramento, morrendo como um Rei Africano...

* Sacramento representava personagens na oficina de teatro da Casa, inventava dialetos diferentes [ou pelo menos nós é que desconhecíamos quais seriam], com roupagens de estilo, espadas, muitas cores entre o amarelo, azul e vermelho, cajados, máscaras, e o olhar, o olhar.

por Lucio Lauro Barrozo Massafferri Salles. 

domingo, 9 de outubro de 2011

A Terceira Margem do Rio - Guimarães Rosa



Guimarães Rosa

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

A Felicidade - Epicuro de Samos



Devemos estudar os meios de alcançar a felicidade, pois, quando a temos, possuímos tudo e, quando não a temos, fazemos tudo por alcançá-la. Respeita, portanto, e aplica os princípios que continuadamente te inculquei, convencendo-te de que eles são os elementos necessários para bem viver. Pensa primeiro que o deus é um ser imortal e feliz, como o indica a noção comum de divindade, e não lhe atribuas jamais carácter algum oposto à sua imortalidade e à sua beatitude. Habitua-te, em segundo lugar, a pensar que a morte nada é, pois o bem e o mal só existem na sensação. De onde se segue que um conhecimento exacto do facto de a morte nada ser nos permite fruir esta vida mortal, poupando-nos o acréscimo de uma ideia de duração eterna e a pena da imortalidade. Porque não teme a vida quem compreende que não há nada de temível no facto de se não viver mais. É, portanto, tolo quem declara ter medo da morte, não porque seja temível quando chega, mas porque é temível esperar por ela.
É tolice afligirmo-nos com a espera da morte, visto ser ela uma coisa que não faz mal, uma vez chegada. Por conseguinte, o mais pavoroso de todos os males, a morte, nada significa para nós, pois enquanto vivemos a morte não existe. E quando a morte veio, já não existimos nós. A morte não existe, portanto, nem para os vivos nem para os mortos, pois para uns ela não é, e pois os outros não são mais.
(...) Deve, em terceiro lugar, compreender-se que, de entre os desejos, uns são naturais e os outros vãos e que, de entre os naturais, uns são necessários e os outros somente naturais. Finalmente, de entre os desejos necessários, uns são necessários à felicidade, outros à tranquilidade do corpo e outros à própria vida. Uma teoria verídica dos desejos ajustará os desejos e a aversão à saúde do corpo e à ataraxia da alma, pois é esse o escopo de uma vida feliz, e todas as nossas acções têm por fim evitar ao mesmo tempo o sofrimento e a inquietação.Quando o conseguimos, todas as tempestades da alma se desfazem, não tendo já o ser vivo de dirigir-se para alguma coisa que não possui, nem buscar outra coisa que possa completar a felicidade da alma e do corpo. Porque nós buscamos o prazer somente quando a sua ausência causa sofrimento. Quando não sofremos, não sabemos que fazer do prazer. E por isso dizemos que o prazer é o começo e o fim de uma vida venturosa. O prazer é, na verdade, considerado por nós como o primeiro dos bens naturais, é ele que nos leva a aceitar ou a rejeitar as coisas, a ele vamos parar, tomando a sensibilidade como critério do bem. Ora, pois que o prazer é o primeiro dos bens naturais, segue-se que não aceitamos o primeiro prazer que vem, mas em certos casos desdenhamos numerosos prazeres quando têm por efeito um tormento maior. Por outro lado, há numerosos sofrimentos que reputamos preferíveis aos prazeres, quando nos trazem um maior prazer. Todo o prazer, na medida em que se conforma com a nossa natureza, é portanto um bem, mas nem todo o prazer é entretanto necessariamente apetecível. Do mesmo modo, se toda a dor é um mal, nem toda é necessariamente de evitar. Daqui procede que é por uma sábia consideração das vantagens e dissabores que traz que cada prazer deve ser apreciado. Na verdade, em certos casos, tratamos o bem como um mal e, noutros, o mal como um bem.
Depender apenas de si mesmo é, em nossa opinião, grande bem, mas não se segue, por isso, que devamos sempre contentar-nos com pouco. Simplesmente, quando a abundância nos falece, devemos ser capazes de contentar-nos com pouco, pois estamos persuadidos de que fruem melhor a riqueza aqueles que menos carecem dela e que tudo que é natural se alcança facilmente, enquanto é difícil obter o que o não é. As iguarias mais simples dão tanto prazer como a mesa mais ricamente servida, quando está ausente o tormento que a carência determina, e o pão e a água causam o mais vivo prazer quando os tomamos após longa privação. O hábito da vida simples e modesta é portanto boa maneira de cuidar da saúde e torna, além disso, o homem corajoso para suportar as tarefas que deve necessariamente realizar na vida. Permite-lhe ainda, eventualmente, apreciar melhor a vida opulenta e endurece-o contra os reveses da fortuna. Por conseguinte, quando dizemos que o prazer é o soberano bem, não falamos dos prazeres dos debochados, nem dos gozos sensuais, como pretendem alguns ignorantes que nos combatem e desfiguram o nosso pensamento. Falamos da ausência de sofrimento físico e da ausência da perturbação moral.
Porque não são nem as bebidas e os banquetes contínuos, nem o prazer do trato com as mulheres, nem o júbilo que dão o peixe e a carne com que se enchem as mesas sumptuosas que ocasionam uma vida feliz, mas hábitos racionais e sóbrios, uma razão buscando incessantemente causas legítimas de escolha ou de aversão e rejeitando as opiniões susceptíveis de trazerem à alma a maior perturbação.
O princípio de tudo isto e, ao mesmo tempo, o maior bem é, portanto, a prudência. Devemos reputá-la superior à própria filosofia, pois que ela é a fonte de todas as virtudes que nos ensinam que não se alcança a vida feliz sem a prudência, a honestidade e a justiça e que a prudência, a honestidade e a justiça não podem obter-se sem o prazer.
As virtudes, efectivamente, provêm de uma vida feliz, a qual, por sua vez, é inseparável das virtudes.

Epicuro, in "Carta a Meneceu"


Lucio Lauro Salles (Lucio.L.B.M.Salles)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

A carta de Albert Einstein para Sigmund Freud: Why War?



Einstein e Freud absolutamente nunca foram íntimos um do outro e apenas tiveram um encontro no início de 1927, na casa do filho mais novo de Freud, em Berlim. Em carta a Ferenczi, dando conta do ocorrido, Freud escreveu: ‘Ele entende tanto de psicologia quanto eu entendo de física, de modo que tivemos uma conversa muito agradável. ’(Ibid., 139). Algumas cartas muito amistosas foram trocadas entre os dois, em 1936 e 1939. (Ibid., 217-18 e 259.)
A presente tradução inglesa da carta de Freud é uma versão corrigida publicada em 1950. A carta de Einstein é incluída aqui com autorização de seus testamenteiros e, por solicitação destes, é apresentada na versão original inglesa de Stuart Gilbert. Parte do texto alemão da carta de Freud foi publicada em Psychoanal. Bewegung, 5 (1933), 207-16. Parte da tradução inglesa de 1933 foi incluída na obra de Rickman, Civilization, War and Death: Selections from Three Works by Sigmund Freud (1939), 82-97.

Foi em 1931 que o Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual foi instruído pelo Comitê Permanente para a Literatura e as Artes da Liga das Nações a promover trocas de correspondência entre intelectuais de renome ‘a respeito de assuntos destinados a servir aos interesses comuns à Liga das Nações e à vida intelectual’, e a publicar essas cartas periodicamente. Entre os primeiros que o Instituto abordou estava Einstein, e foi ele quem sugeriu o nome de Freud. Assim sendo, em junho de 1932, o secretário do Instituto escreveu a Freud, convidando-o a participar, ao que ele prontamente acedeu. A carta de Einstein chegou-lhe no início de agosto, e sua resposta estava concluída um mês depois. A correspondência foi publicada em Paris, pelo Instituto, em março de 1933, em alemão, francês e inglês, simultaneamente. No entanto, sua circulação foi proibida na Alemanha.
Freud não ficou propriamente entusiasmado com o trabalho e qualificou-o como discussão enfadonha e estéril (Jones, 1957, 187). Já anteriormente Freud escrevera sobre o tema da guerra: na primeira seção (‘The Disillusionment of War’) de seu artigo ‘Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte’ (1915b), escrito logo após o início da primeira guerra mundial. Embora algumas das idéias expressas no presente artigo apareçam no anterior, elas estão mais estreitamente relacionadas às idéias contidas em seus escritos recentes sobre temas sociológicos — O Futuro de uma Ilusão (1927c) e O Mal-Estar na Civilização (1930a). Um interesse especial surge aqui em relação a um desenvolvimento maior de pontos de vista de Freud sobre civilização como ‘processo’, que tinham sido apresentados por ele em diversos tópicos do último desses trabalhos mencionados (por exemplo, no final do Capítulo III, Edição Standard Brasileira, Vol. XXI, págs. 117-18, IMAGO Editora, 1974, e na última parte do Capítulo VIII, ibid., pág. 164 e segs.). Também retoma, uma vez mais, o tema do instinto destrutivo, sobre o qual discorrera extensamente nos Capítulos V e VI do mesmo livro, e ao qual haveria de retornar em escritos posteriores. (Cf. a Introdução do Editor Inglês a O Mal-Estar na Civilização, ibid., págs. 78-80.)
CARTA DE EINSTEIN

Why War?
(Por que a Guerra?)
Caputh junto a Potsdam, 30 de julho de 1932

Prezado Professor Freud

A proposta da Liga das Nações e de seu Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual, em Paris, de que eu convidasse uma pessoa, de minha própria escolha, para um franco intercâmbio de pontos de vista sobre algum problema que eu poderia selecionar, oferece-me excelente oportunidade de conferenciar com o senhor a respeito de uma questão que, da maneira como as coisas estão, parece ser o mais urgente de todos os problemas que a civilização tem de enfrentar. Este é o problema:
 Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema adquiriu significação de assunto de vida ou morte para a civilização, tal como a conhecemos; não obstante, apesar de todo o empenho demonstrado, todas as tentativas de solucioná-lo terminaram em lamentável fracasso.
Ademais, acredito que aqueles cuja atribuição é atacar o problema de forma profissional e prática, estão apenas adquirindo crescente consciência de sua impotência para abordá-lo, e agora possuem um vivo desejo de conhecer os pontos de vistas de homens que, absorvidos na busca da ciência, podem mirar os problemas do mundo na perspectiva que a distância permite. Quanto a mim, o objetivo habitual de meu pensamento não me permite uma compreensão interna das obscuras regiões da vontade e do sentimento humano.
 Assim, na indagação ora proposta, posso fazer pouco mais do que procurar esclarecer a questão em referência e, preparando o terreno das soluções mais óbvias, possibilitar que o senhor proporcione a elucidação do problema mediante o auxílio do seu profundo conhecimento da vida instintiva do homem. Existem determinados obstáculos psicológicos cuja existência um leigo em ciências mentais pode obscuramente entrever, cujas inter-relações e filigranas ele, contudo, é incompetente para compreender; estou convencido de que o senhor será capaz de sugerir métodos educacionais situados mais ou menos fora dos objetivos da política, os quais eliminarão esses obstáculos.
Como pessoa isenta de preconceitos nacionalistas, pessoalmente vejo uma forma simples de abordar o aspecto superficial (isto é, administrativo) do problema: a instituição, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflito que surja entre nações. Cada nação submeter-se-ia à obediência às ordens emanadas desse organismo legislativo, a recorrer às suas decisões em todos os litígios, a aceitar irrestritamente suas decisões e a pôr em prática todas as medidas que o tribunal considerasse necessárias para a execução de seus decretos.
 Já de início, todavia, defronto-me com uma dificuldade; um tribunal é uma instituição humana que, em relação ao poder de que dispõe, é inadequada para fazer cumprir seus veredictos, está muito sujeito a ver suas decisões anuladas por pressões extrajudiciais. Este é um fato com que temos de contar; a lei e o poder inevitavelmente andam de mãos dadas, e as decisões jurídicas se aproximam mais da justiça ideal exigida pela comunidade (em cujo nome e em cujos interesses esses veredictos são pronunciados), na medida em que a comunidade tem efetivamente o poder de impor o respeito ao seu ideal jurídico.
 Atualmente, porém, estamos longe de possuir qualquer organização supranacional competente para emitir julgamentos de autoridade incontestável e garantir absoluto acatamento à execução de seus veredictos. Assim, sou levado ao meu primeiro princípio; a busca da segurança internacional envolve a renúncia incondicional, por todas as nações, em determinada medida, à sua liberdade de ação, ou seja, à sua soberania, e é absolutamente evidente que nenhum outro caminho pode conduzir a essa segurança.
O insucesso, malgrado sua evidente sinceridade, de todos os esforços, durante a última década, no sentido de alcançar essa meta, não deixa lugar à dúvida de que estão em jogo fatores psicológicos de peso que paralisam tais esforços. Alguns desses fatores são mais fáceis de detectar. O intenso desejo de poder, que caracteriza a classe governante em cada nação, é hostil a qualquer limitação de sua soberania nacional. Essa fome de poder político está acostumada a medrar nas atividades, de um outro grupo, cujas aspirações são de caráter econômico, puramente mercenário. Refiro-me especialmente a esse grupo reduzido, porém decidido, existente em cada nação, composto de indivíduos que, indiferentes às condições e aos controles sociais, consideram a guerra, a fabricação e venda de armas simplesmente como uma oportunidade de expandir seus interesses pessoais e ampliar a sua autoridade pessoal.
O reconhecimento desse fato, no entanto, é simplesmente o primeiro passo para uma avaliação da situação atual. Logo surge uma outra questão: como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos? (Ao falar em maioria, não excluo os soldados, de todas as graduações, que escolheram a guerra como profissão, na crença de que estejam servindo à defesa dos mais altos interesses de sua raça e de que o ataque seja, muitas vezes, o melhor meio de defesa.) Parece que uma resposta óbvia a essa pergunta seria que a minoria, a classe dominante atual, possui as escolas, a imprensa e, geralmente, também a Igreja, sob seu poderio. Isto possibilita organizar e dominar as emoções das massas e torná-las instrumento da mesma minoria.
Ainda assim, nem sequer essa resposta proporciona uma solução completa. Daí surge uma nova questão: como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais; é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que só um especialista na ciência dos instintos humanos pode resolver.
Com isso, chegamos à nossa última questão. É possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade? Aqui não me estou referindo tão-somente às chamadas massas incultas. A experiência prova que é, antes, a chamada ‘Intelligentzia’ a mais inclinada a ceder a essas desastrosas sugestões coletivas, de vez que o intelectual não tem contato direto com o lado rude da vida, mas a encontra em sua forma sintética mais fácil — na página impressa.
Para concluir: Até aqui somente falei das guerras entre nações, àquelas que se conhecem como conflitos internacionais. Estou, porém, bem consciente de que o instinto agressivo opera sob outras formas e em outras circunstâncias. (Penso nas guerras civis, por exemplo, devidas à intolerância religiosa, em tempos precedentes, hoje em dia, contudo, devidas a fatores sociais; ademais, também nas perseguições a minorias raciais.) Foi deliberada a minha insistência naquilo que é a mais típica, mais cruel e extravagante forma de conflito entre homem e homem, pois aqui temos a melhor ocasião de descobrir maneiras e meios de tornar impossíveis qualquer conflito armado.
Sei que nos escritos do senhor podemos encontrar respostas, explícitas ou implícitas, a todos os aspectos desse problema urgente e absorvente. Mas seria da maior utilidade para nós todos que o senhor apresentasse o problema da paz mundial sob o enfoque das suas mais recentes descobertas, pois uma tal apresentação bem poderia demarcar o caminho para novos e frutíferos métodos de ação.

Muito cordialmente,
Albert Einstein. Viena, setembro de 1932.
WARUM KRIEG?

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1933    Paris: Internationales Institut für Geistige Zusammenarbeit (Völkerbund). 62 págs.
1934    G. S., 12, 349-63. (Apenas com um resumo muito breve da carta de Einstein.)
1950    G. W., 16, 13-27. (Reimpressão da anterior.)

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:

Why War?
(Por que a Guerra?)

1933    Paris: Instituto Internacional para Cooperação Intelectual (Liga das Nações). 57 págs. (Trad. de Stuart Gilbert.)
1939    Londres: Peace Pledge Union. 24 págs. (Re-impressão da anterior.)
1950    C. P., 5, 273-87. (Omite a carta de Einstein.) (Trad. de James Strachey.)

Lucio Lauro Salles (Lucio.L.B.M.Salles)

sábado, 4 de setembro de 2010

O Poema - A Promessa Quebrada.


Perdoem-me a ousadia e a pretensão, pois não sou poeta. Mas certo dia, em boas recordações, escrevi " a Promessa Quebrada", que me pareceu, muito toscamente, ter algo de poético. Compartilho, então, agradecendo às milhares de pessoas com quem já cruzei pela vida, e que me deram, desde um "simples oi", até alguma conversa mais demorada. São todos personagens que compõe a trilha, quase inominável, que nos esforçamos, todos, por identificar com a singela alcunha de, "EU".
Em memória dos que se foram, amados, mas ficaram, em algum lugar.
Em homenagem aos que ficam e vivem, sem se preocupar em compreender em demasia, o que, na visão da raposa de Exupéry, seria um sacrilégio com o amor e a amizade.


A PROMESSA QUEBRADA

de Lucio Lauro B Massafferri Salles
in memoriam: Zilda Massafferri


Era uma vez uma promessa que fiz. Quando pequeno prometi não crescer. Prometi não morrer. Descobri cedo o segredo da eternidade. O adeus é algo difícil de se viver. Não há como entender o porquê se vai. Nunca mais. Se foi. Para sempre partiu. Partiu-se. É uma flecha de gelo atravessando a alma. Para não ter que repetir o adeus, sendo eu mesmo despedida, resolvi que não mais haveria fim, pois só quem perde algo que ama de fato é que sabe da dor em perder, sem poder dar adeus de verdade. Jamais irei crescer. Jamais irei morrer. Pois os pequenos jamais se dizem a-deus. O para sempre é um mundo à parte. Em que o tudo e o nada acontecem ao mesmo tempo. Todo mundo que tem medo do adeus tem um mundo para sempre. É impossível que não tenha. Bom e mau. Vilão e herói. Mocinho e bandido. Não se diz a-deus do mundo para sempre. Porém nada na vida é para sempre. Ser eterno tem seu preço. Ser eterno é ser e não ser ao mesmo tempo no mesmo espaço. Na mesma relação. A dor de adeus não mais sentia. E no lugar que deveria ser dela. Veio outra. A de não ser livre. No limbo da promessa do ser e do não ser ao mesmo tempo. Sem tempo. Ser livre é ser feliz. É poder se despedir da noite dando-lhe a-deus para poder saudar o dia. O sol-rir para ele. É poder vibrar com o pouco. Fazer dança com a chuva das próprias lágrimas. Ser livre também é poder morrer. Descobri. Pois um rio sempre se move. Quando começa e quando termina. Em algum lugar. E não começa e nem termina. Em lugar algum. E suas águas não param. A vida é uma doce e breve visita. Mal a gente chega é já é hora de partir. É a arte de saber chegar. É a arte de saber sair.