sábado, 14 de março de 2009

Entrevista de Lacan - Roma 74



Entrevista à imprensa de Jacques Marie Lacan
29 de outubro de 1974 no Centre Culturel Français - Rome

Jacques Lacan - 29/10/1974




J. Lacan - Tomei posição na psicanálise, em 1953, muito exatamente. Houve um primeiro congresso em outubro, em Roma.
Acredito - não perguntei - mas imagino que se pensou em algo como um aniversário para mim: não é pouco, vinte e um anos; foram os vinte e um anos durante os quais ensinei de uma maneira que recortou, por assim dizer, minhas posições. Já tinha começado meu ensino dois anos antes de 1953. Talvez tenha sido nisso que se tenha pensado.
Por outro lado, eu não tinha nenhuma razão para objetar a isso, tanto mais que Roma, apesar de tudo, é um lugar que conserva um grande alcance, e muito especialmente para a psicanálise. Se por acaso - não se sabe, pode acontecer - vocês vierem ouvir o que eu preparei, porque preparei algo para eles, que esperavam que eu falasse; eu não quis que isso fosse anunciado, mas preparei algo; preparei até mesmo com muito cuidado, devo frisar; se por acaso vocês vierem, ouvirão algo que diz respeito às relações da psicanálise com a religião. Elas não são muito amigáveis. Em suma, é ou uma ou a outra. Se a religião triunfar, como é o mais provável - falo da verdadeira religião, não há senão uma verdadeira - se a religião triunfar, isso será sinal de que a psicanálise fracassou. É muito normal que ela fracasse, porque aquilo ao qual se consagra é muito, muito difícil. Mas, enfim, como não tenho a intenção de fazer uma conferência agora, só posso dizer isso, é que a psicanálise é algo de muito difícil.
A senhora é jornalista de que jornal?
Sra. X - Agence Centrale de Presse de Paris.
J. Lacan - É algo muito difícil, a psicanálise. Primeiramente, é muito difícil ser psicanalista, porque é preciso colocar-se numa posição que é totalmente insustentável. Freud já tinha dito isso. É uma posição insustentável, a do psicanalista.
Sra. X - Quantos alunos do Dr. Lacan estarão neste Congresso?
J. Lacan - Neste Congresso? Não tenho idéia.
Sra. X - Quantos participantes?
J. Lacan - Há muito mais participantes neste Congresso, suponho, do que as pessoas de minha Escola. Porque há uma espécie de curiosidade em torno de mim. É maluco, mas é assim.
Sra. X - Mas é motivada, essa maluquice?
J. Lacan - Motivada pela minha, provavelmente. Mas eu, naturalmente, não estou a par.
Sra. X - Creio que minha agência concorrente quer tomar a palavra.
Sr. Y - (inaudível)
Sra. X - Eu estava simplesmente perguntando ao Professor Lacan por que ele dizia que o psicanalista encontrava-se numa posição insustentável?
J. Lacan - Quando eu disse isso, salientei que não era o primeiro a dizê-lo. Há alguém em quem podemos confiar em relação ao que falou sobre a posição do psicanalista, que é muito, muito precisamente, Freud. Então Freud ampliava isso; ele disse que havia um certo número de posições insustentáveis dentre as quais colocava ‘governar’ - como vocês vêem, isso significa primeiramente que uma posição insustentável é justamente aquilo em direção ao qual todo mundo se precipita, já que para governar nunca faltam candidatos - é como para a psicanálise, não faltam candidatos.
Depois Freud acrescentava ainda: educar. Para isso, então, faltam menos candidatos ainda. É uma posição que se considera como sendo até mesmo vantajosa; quero dizer que também para isso não somente não faltam candidatos, mas não faltam pessoas que recebem o carimbo, isto é, que são autorizadas a educar. Isso não significa que elas tenham a mais vaga idéia do que é educar. Mas, enfim, isso sugere, no entanto, muitas meditações. As pessoas não se dão bem conta do que querem fazer quando educam. Raramente refletem sobre isso. Mas, enfim, o sinal de que há, entretanto, algo que pode, pelo menos de vez em quando, inquietá-las é que, às vezes, elas são tomadas de uma coisa que é muito particular, que somente os analistas conhecem realmente bem, elas são tomadas de angústia. São tomadas de angústia quando pensam nisso, no que significa educar. Mas, contra a angústia, há montes de remédios. Em particular, há um certo número de coisas que se chama de ‘concepções do homem’, do que é o homem. Isso varia muito. Ninguém se dá conta disso, mas isso varia enormemente, a concepção que se pode ter do homem.
Existe um livro muito bom que foi publicado e que diz respeito a isso, à educação. É um livro organizado por Jean Chateau. Jean Chateau era um aluno de Alain. Falo disso porque é um livro pelo qual me interessei há bem pouco tempo. Ainda não o terminei. É um livro absolutamente sensacional. Começa em Platão e continua com um certo número de pedagogos. E a gente percebe, no entanto, que a base, o que se chama de base da educação, isto é, uma certa idéia do que é preciso para fazer homens - (como se fosse a educação que os fizesse; na verdade, é bem certo que não é obrigatório que o homem seja educado; ele faz sua educação sozinho; seja como for, ele se educa, já que é preciso que aprenda alguma coisa, que pene um pouco), mas, enfim, os educadores, propriamente falando, são pessoas que pensam que podem ajudá-los, e até mesmo que haveria ao menos uma espécie de mínimo a dar para que os homens sejam homens, e que isso passa pela educação. Na verdade, eles não estão errados. É preciso, de fato, que haja uma certa educação para que os homens consigam suportar-se entre si. Em relação a isso, há o analista. As pessoas que governam, as pessoas que educam têm uma diferença considerável em relação ao analista: isso se fez desde sempre. E eu repito que isso abunda, quero dizer que não se pára de governar e que não se pára de educar. Já o analista, este não tem nenhuma tradição. É um recém chegado. Quero dizer que, dentre as posições impossíveis, ele encontrou uma nova. Então não é particularmente cômodo sustentar uma posição na qual, para a maioria dos analistas, tem-se apenas um pequenino século atrás de si para se orientar. Isso é algo realmente muito novo e reforça o caráter impossível da coisa. Quero dizer que se tem realmente que descobri-la. É por isso que é entre os analistas, isto é, lá, a partir do primeiro deles, que devido à posição que ocupam, que eles descobriam e da qual percebiam muito bem o caráter impossível, eles a fizeram incidir sobre a posição de governar e a de educar; como eles, ainda se encontram na fase do despertar; isso lhes permitiu perceber que, afinal de contas, tanto as pessoas que governam como as pessoas que educam não têm a mínima idéia do que fazem. Isso não as impede de fazê-lo, nem mesmo de fazê-lo mais ou menos bem, porque, afinal, governantes, precisa-se deles, e os governantes governam, este é um fato; não somente governam, mas isso dá prazer a todo mundo.
Sra. X - Voltamos a Platão.
J. Lacan - Sim, voltamos a Platão. Não é difícil achar Platão. Platão disse uma enormidade de banalidades, e naturalmente nós as achamos. Mas é certo que a chegada do analista à sua própria função permitiu lançar uma espécie de luz rasante sobre as outras funções. Consagrei um ano inteiro, precisamente todo um seminário, a esse ponto, explicando a relação que deriva da existência dessa função totalmente nova que é a função analítica, e como isso ilumina as outras. Então, isso me levou, é claro, a nela mostrar articulações que não são comuns - porque se fossem comuns, não diferiam - e a mostrar como isso pode ser manipulado, e de um certo modo de uma maneira realmente muito, muito simples. Há quatro pequenos elementos que giram. E naturalmente os quatro pequenos elementos mudam de lugar, e isso termina por produzir coisas muito interessantes.
Há algo de que Freud não tinha falado, porque era uma coisa tabu para ele, era a posição do cientista, a posição da ciência. A ciência tem uma chance, é uma posição igualmente impossível, só que ela não tem ainda a menor idéia disso. Eles mal começam agora, os cientistas, a ter crises de angústia! Eles começam a se perguntar - é uma crise de angústia igual a qualquer outra crise de angústia, a angústia é uma coisa totalmente fútil, totalmente cagona - mas é divertido ver que os cientistas, os cientistas que trabalham em laboratórios muito sérios, nestes últimos tempos de repente vimos alguns que se alarmaram, que ‘amarelaram’, como se diz - vocês falam francês? Vocês sabem o que é amarelar? Amarelar é ficar com medo -, que se disseram: ‘mas se todas essas bacteriazinhas com as quais fazemos coisas tão maravilhosas, suponham que, um dia, depois que tivéssemos feito delas realmente um instrumento absolutamente sublime de destruição da vida, suponham que um indivíduo as tirasse do laboratório?’
Em primeiro lugar, eles ainda não chegaram lá, isso ainda não aconteceu, mas começam assim mesmo a ter uma pequena idéia de que poderiam fazer bactérias super resistentes a tudo e que, a partir desse momento, não se conseguiria mais pará-las, e que talvez isso limpasse a superfície do globo de todas essas merdinhas, particularmente humanas, que o habitam. E então eles se sentiram de repente tomados por uma crise de responsabilidade. Fizeram o que se chama de embargo sobre um certo número de pesquisas - talvez tenham tido uma idéia, afinal de contas, não tão ruim do que fazem, quero dizer, que é verdade que isso poderia talvez ser muito perigoso; não acredito nisso; a animalidade é imperecível; não são as bactérias que nos desembaraçarão de tudo isso! Mas eles tiveram uma crise de angústia, é tipicamente a crise de angústia. E então lançaram uma espécie de proibição, provisória pelo menos, disseram-se que era preciso refletir com cautela antes de levar muito longe certos trabalhos sobre as bactérias. Seria um alívio sublime se, de repente, nos encontrássemos diante de um verdadeiro flagelo, um flagelo saído das mãos dos biólogos, seria realmente um triunfo, isso significaria realmente que a humanidade teria chegado a algo, à sua própria destruição, por exemplo, este é realmente o sinal da superioridade de um ser sobre todos os outros, não somente sua própria destruição, mas a destruição de todo o mundo vivo! Mas isso dá ainda assim um pouco de angústia. Ainda não chegamos lá.
Como a ciência não tem nenhuma idéia do que faz, exceto quando tem uma dessas crisezinhas de angústia, ela vai ainda assim continuar por um certo tempo e, provavelmente por causa de Freud, ninguém pensou em dizer que era tão impossível ter uma ciência, uma ciência que dê resultados, quanto governar e educar. Mas se, no entanto, conseguimos ter uma pequena suspeita disso é por causa da análise. Porque a análise, esta, ela está realmente aí. A análise, não sei se vocês estão a par, a análise ocupa-se muito especialmente daquilo que não funciona; é uma função mais impossível ainda do que as outras, mas graças ao fato de que se ocupa do que não funciona, ela se ocupa dessa coisa que se deve chamar por seu nome, e devo dizer que continuo sendo o único a tê-la chamado assim, e que se chama o real. A diferença entre o que funciona e o que não funciona é que a primeira coisa é o mundo, o mundo anda, ele gira, é sua função de mundo; para perceber que não há mundo, ou seja, que há coisas que só os imbecis acreditam estar no mundo, basta observar que existem coisas que fazem com que o mundo seja imundo, se posso me expressar assim; é disso que se ocupam os analistas; de modo que, contrariamente ao que se acredita, eles se confrontam muito mais com o real mesmo do que os cientistas; eles só se ocupam disso. E como o real é o que não funciona, eles são, além disso, forçados a se submeter a ele, isto é, forçados todo o tempo a expor-se. Para isso, é preciso que sejam super blindados contra a angústia.
Já é alguma coisa que ao menos eles possam, da angústia, falar dela. Falei um pouco dela em uma época. Isso fez um pouco de efeito; causou um torvelinho. Houve um indivíduo que me procurou depois disso, um de meus alunos, alguém que tinha seguido o seminário sobre a angústia durante um ano inteiro, que veio e estava absolutamente entusiasmado, era justamente o ano em que tinha ocorrido na psicanálise francesa (enfim, o que se chama assim) a segunda cisão; ele estava tão entusiasmado que pensou que era preciso me pôr dentro de um saco e me afogar; gostava tanto de mim que esta era a única conclusão que lhe parecia possível.
Eu briguei com ele; até mesmo o botei pra fora, com palavras ofensivas. Isso não o impediu de sobreviver e mesmo de aderir finalmente à minha Escola. Vejam como são as coisas. São feitas de coisas burlescas. Talvez seja isso o que se pode esperar de um futuro da psicanálise, é se ela se destina suficientemente ao burlesco. É isso, acho que respondi um pouco.
Sra. Y - O senhor poderia precisar em que a Ecole Freudienne de Paris distingue-se das outras escolas?
J. Lacan - Somos sérios nela. É a distinção decisiva.
Sra. Y - As outras escolas não são sérias?
J. Lacan - De jeito nenhum.
Sra. Y - Agora há pouco, o senhor disse ‘se a religião triunfar, a psicanálise terá fracassado’. O senhor pensa que se vai hoje a um psicanalista como se ia antes ao seu confessor?
J. Lacan - Eu sabia que iam me fazer essa pergunta! Essa história de confissão é uma história para boi dormir. Por que vocês acham que as pessoas se confessam?
Sra. Y - Quando as pessoas vão ao psicanalista, elas se confessam também.
J. Lacan - Mas de jeito nenhum! Não tem nada a ver. É o bê-a-bá começar por explicar às pessoas que elas não estão ali para se confessar. Elas estão ali para dizer, para dizer qualquer coisa.
Sra. Y - Como o senhor explica esse triunfo da religião sobre a psicanálise?
J. Lacan - Não é absolutamente por intermédio da confissão.
Sra. Y - O senhor disse ‘se a religião triunfar, a psicanálise terá fracassado’. Como o senhor explica o triunfo da psicanálise sobre a religião?
J. Lacan - A psicanálise não baterá a religião; a religião é imperecível. A psicanálise não triunfará, ela sobreviverá ou não.
Sra. Y - Por que ter empregado essa expressão do triunfo da religião sobre a psicanálise? O senhor está persuadido de que a religião triunfará?
J. Lacan - Sim, ela não triunfará somente sobre a psicanálise, ela triunfará sobre muitas outras coisas ainda. Nem mesmo se pode imaginar o quão poderosa é a religião. Recém falei um pouco do real. A religião vai ter também aqui muito mais razões para apaziguar os corações, se assim se pode dizer, porque o real, por menos que a ciência queira se envolver, a ciência de que falava há pouco, é novidade, a ciência, ela vai provocar um monte de rebuliço na vida de cada um. E a religião, sobretudo a verdadeira, tem recursos que nem se pode imaginar. Basta ver por enquanto como ela fervilha; é absolutamente fabuloso. Eles levaram tempo, mas de repente compreenderam qual era sua chance com a ciência. A ciência vai introduzir tais convulsões que será preciso que, a todas essas convulsões, eles dêem um sentido. E, no que diz respeito ao sentido, eles sabem o que fazem. São capazes de dar um sentido, pode-se dizer, realmente a qualquer coisa, um sentido à vida humana, por exemplo. São formados para isso. Desde o começo, tudo o que é religião consiste em dar um sentido às coisas que eram outrora as coisas naturais. Mas não é porque as coisas vão-se tornar menos naturais, graças ao real, não é por isso que se vai parar de produzir o sentido. E a religião vai dar um sentido às provas mais curiosas, aquelas sobre as quais justamente os próprios cientistas começam a ter uma pontinha de angústia; a religião vai encontrar para isso sentidos espantosos. Basta ver como as coisas funcionam agora. Eles estão se atualizando.
Sra. Y - A psicanálise vai-se tornar uma religião?
J. Lacan - A psicanálise? Não, pelo menos eu espero que não. Mas talvez ela se torne, de fato, uma religião, quem sabe, por que não? Mas não acho que este seja meu viés. Penso que a psicanálise não aconteceu em um momento histórico qualquer; ela aconteceu correlativamente a um passo capital, a um certo avanço do discurso da ciência. A análise aconteceu aí - vou-lhes dizer o que digo sobre isso em minhas notas, nesta coisa que cogitei para este Congresso: a psicanálise é um sintoma. Só que é preciso compreender de quê. Ela é em todo caso claramente, como disse Freud, (porque ele falou de Mal-estar da civilização) - a psicanálise faz parte desse mal-estar da civilização. Então, o mais provável é, no entanto, que não vai se ficar na constatação de que o sintoma é o que há de mais real. Vão nos produzir sentido a dar com um pau, e isso nutrirá não somente a verdadeira religião, mas um monte de falsas.
Sra. Y - O que isso quer dizer, a verdadeira religião?
J. Lacan - A verdadeira religião é a romana. Tentem colocar todas as religiões no mesmo saco e fazer, por exemplo, o que se chama de história das religiões, é realmente horrível. Há uma verdadeira religião, é a religião cristã. Trata-se apenas de saber se essa verdade agüentara, ou seja, se ela será capaz de produzir sentido de modo que se fique realmente afogado nele. E é certo que ela conseguirá, porque tem recursos. Já existem montes de coisas que são preparadas para isso. Ela interpretará o Apocalipse de São João. Muitas pessoas já o tentaram. Ela encontrará uma correspondência de tudo com tudo. É até mesmo sua função.
Já o analista é outra coisa bem diferente. Ele está numa espécie de momento de metamorfose. Durante um breve momento, pôde-se perceber o que era a intrusão do real. O analista, este, fica nisso. Ele está ali como um sintoma, e só pode durar a título de sintoma. Mas vocês verão que se curará a humanidade da psicanálise. De tanto afogá-lo no sentido, no sentido religioso, evidentemente, se conseguirá recalcar este sintoma. A senhora está acompanhando? Uma luzinha se acendeu no seu juízo? A minha posição não lhe parece moderada?
Sra. Y - Estou escutando.
J. Lacan - A senhora está escutando.. sim. Mas será que a senhora pesca aí alguma coisinha que se pareça com o real?
Sra. Y - (início inaudível) ... cabe a mim, depois, fazer uma espécie de síntese.
J. Lacan - A senhora vai fazer uma síntese? A senhora tem sorte! De fato, tire disso o que conseguir.
Um breve instante, teve-se um clarão de verdade com a psicanálise.
Isso não vai forçosamente durar.
Sr. X - (fala italiano) - tradução: Este senhor leu seus Escritos em italiano, na coleção que se chama ‘Cosa freudiana’.
J. Lacan - Como? Não há coleção ‘Cosa freudiana’.
Intérprete - Sob o título ‘Cosa freudiana’ há diversos artigos.
J. Lacan - É com esse título que são traduzidos meus Escritos, a Cosa freudiana? Eu pensava que era um artigo bem específico. La chose freudienne, em francês, é o título de um de meus Escritos. Intérprete - Então, o livrinho que contém cinco ou seis artigos seus, traduzido há dois ou três anos, chama-se Cosa freudiana.
Sr. X - (em italiano) Este senhor está dizendo que os Escritos são muito obscuros, muito difíceis de compreender e que alguém que quiser compreender seus próprios problemas lendo esses textos encontra-se numa profunda desamparo e pouco à vontade.
A segunda impressão é esta: o senhor é um dos mais célebres representantes do retorno a Freud. Ora, a impressão superficial que ele tem da coisa é que esse retorno a Freud é um pouco problemático. Este senhor diz que a sua retomada de Freud, dos textos freudianos, torna a leitura de Freud ainda mais complicada.
J. Lacan - Talvez porque eu faça perceber o que o próprio Freud, aliás, levou muito tempo a fazer entrar na cabeça de seus contemporâneos. Deve-se dizer que, quando Freud publicou ‘A interpretação dos sonhos’, ele não vendeu muito, venderam-se - não sei, numa época eu sabia, e não gostaria de passar um dado totalmente errado, mas são cerca de trezentos exemplares em quinze anos. Freud teve que se esforçar muito para forçar, para introduzir no pensamento de seus contemporâneos algo tão específico e, ao mesmo tempo, tão pouco filosófico. Não é porque ele tomou de não sei quem, de Herbart, a palavra Unbewusste, que não era absolutamente o que os filósofos chamavam ‘inconsciente’; isso não tinha nenhuma relação. Foi isso que me esforcei para demonstrar, é como o inconsciente de Freud se especifica; os universitários conseguiram pouco a pouco digerir o que Freud, com muita habilidade, aliás, esforçara-se para lhes tornar comestível, digerível, o próprio Freud prestou-se à coisa, querendo convencer; o sentido do retorno a Freud é este: mostrar o que há de decisivo na posição de Freud, no que Freud tinha descoberto, no que Freud colocava em jogo de uma maneira, eu diria, completamente inesperada, porque era realmente a primeira vez que se via surgir algo que não tinha estritamente nada a ver com o qualquer um dissera antes. O inconsciente de Freud é isso, é a incidência de algo que é completamente novo.
Então, não estou totalmente surpreso já que o senhor só fala italiano, pelo menos é o que suponho, senão por que não me falaria em francês; se o senhor lê meus Escritos traduzidos para o italiano, vou-lhe dizer, primeiramente, que talvez eles não estejam bem traduzidos; não posso verificar, não tenho condições de verificar; o tradutor veio freqüentemente me pedir conselhos para se esclarecer, mas ele tem lá suas ideiazinhas, o que eu respondi talvez não lhe tenha servido muito.
E depois também vou-lhe dizer algo que é característico de meus Escritos: é que meus Escritos, eu não os escrevi para que fossem compreendidos, eu os escrevi para que fossem lidos, não é absolutamente a mesma coisa. É um fato que, contrariamente a Freud, há, entretanto, muitas pessoas que os lêem, certamente mais pessoas do que as que leram Freud em quinze anos; no fim, é claro, Freud teve um enorme sucesso de vendas. Mas ele esperou muito tempo por isso. Quanto a mim, jamais esperei nada parecido. Foi uma grande surpresa para mim quando soube que meus Escritos se vendiam. Jamais compreendi como isso pode acontecer. O que constato, em contrapartida, é que mesmo que não sejam compreendidos, eles provocam algo nas pessoas. Freqüentemente observei isso. Elas não compreendem nada, é totalmente verdade, durante um certo tempo, mas alguma coisa as toca. E é por isso que eu seria levado a crer, contrariamente ao que se imagina de fora, imagina-se que as pessoas compram simplesmente meus Escritos e que não os abrem; isso é um erro; elas os abrem, e até mesmo trabalham neles; e chegam a se exaurir fazendo isso; porque evidentemente, quando se começam meus Escritos, o que se pode fazer de melhor, de fato, é tentar compreendê-los; e como não são compreendidos - não fiz de propósito para que não fossem compreendidos, mas, enfim, isso foi uma conseqüência das coisas, eu falava, eu dava aulas, muito seguidas e muito compreensíveis, mas como eu só transformava isso em texto escrito uma vez por ano, naturalmente isso dava um texto que, em relação ao volume do que eu tinha dito, era uma espécie de concentrado totalmente inacreditável, que deve de alguma maneira ser posto na água como as flores japonesas, para vê-lo se desdobrar. É uma comparação que vale como qualquer outra.
O que posso lhe dizer é que é bastante habitual, eu sei como as coisas se produzem porque já me aconteceu de escrever, há bastante tempo mesmo, é bastante habitual que em dez anos um de meus Escritos se torne transparente, meu caro. Até mesmo o senhor compreenderia! Dentro de dez anos, meus Escritos, mesmo na Itália, mesmo traduzidos do jeito que estão, lhe parecerão ninharia, lugares comuns. Porque há algo que é no entanto bastante curioso, é que até mesmo textos, que são textos muito sérios, tornam-se finalmente lugares comuns. Dentro de muito pouco tempo, o senhor verá, se encontrará Lacan em todas as esquinas! Assim como Freud! No fim, todo mundo pensa ter lido Freud, porque Freud está em toda parte, está nos jornais, etc. Isso vai me acontecer, a mim também, o senhor verá, assim como poderia acontecer a qualquer um que se aplicasse a isso - se se fizessem coisas um pouco rigorosas, é claro, rigorosas em torno de um ponto bem preciso que é o que chamo de sintoma, ou seja, o que não funciona. Houve um momento na história em que havia um número suficiente de pessoas desocupadas para se dedicarem muito especialmente ao que não funciona, e dar uma fórmula do ‘que não funciona’ em estado nascente, se assim posso dizer. Como expliquei há pouco, tudo isso se porá a girar em círculo, isto é, na realidade, a ficar afogado sob as mesmas coisas mais nojentas dentre aquelas que conhecemos há séculos e que naturalmente se restabelecerão. A religião, eu lhes digo, é feita para isso, é feita para curar os homens, quer dizer que eles não percebem o que não funciona. Houve uma pequena chama - entre dois mundos, se posso dizer assim, entre um mundo passado e um mundo que vai se reorganizar como um soberbo mundo vindouro. Não acho que a psicanálise detenha uma chave qualquer do futuro. Mas terá sido um momento privilegiado durante o qual se terá tido uma medida bem justa do que é o que chamo em um discurso de ‘falasser’. O falasser é uma maneira de expressar o inconsciente. O fato de que o homem seja um animal falante, o que é totalmente imprevisto, o que é totalmente inexplicável, saber o que é, com o que isso se fabrica, essa atividade da fala, é uma coisa sobre a qual tento trazer algumas luzes no que vou falar neste Congresso. Isso está muito ligado a certas coisas que Freud tomou como sendo da ordem da sexualidade e, com efeito, isso tem uma relação, mas se relaciona à sexualidade de uma maneira muito, muito particular.
É isto. Então o senhor verá. Guarde esse livrinho no seu bolso e releia-o em quatro ou cinco anos, o senhor verá que então vai lamber os beiços!
Sr. Y - (em italiano) tradução: Segundo o que eu compreendi, na teoria lacaniana geral, na base do homem não está a biologia ou a fisiologia, está a linguagem. Mas São João já tinha dito isso: ‘No começo, era o Verbo’. O senhor não acrescentou nada a isso.
J. Lacan - Acrescentei uma coisinha. São João começa seu evangelho dizendo que ‘No começo, era o Verbo’. Com isso, eu estou bem de acordo. Mas antes do começo, onde é que ele estava? É isso que é realmente impenetrável. Porque ele disse ‘No começo, era o Verbo’, isso é o evangelho de São João. Só que há uma outra coisa chamada Gênese, que não deixa totalmente de ter relação com este troço, o Verbo. Naturalmente, juntaram-se as pontas dizendo que o Verbo dizia respeito a Deus pai e que se reconhecia bem que a Gênese era tão verdadeira quanto o evangelho de São João, visto que Deus era com o Verbo que ele criava o mundo. É um negócio engraçado este! Na Escritura judaica, a Escritura Santa, vê-se muito bem para que serve o fato de que o Verbo tenha estado de algum modo não no começo, mas antes do começo, é que graças a isso, como ele estava antes do começo, Deus se crê no direito de fazer todo tipo de reprimendas às pessoas a quem ele deu um presentinho, do tipo ‘piopio, piopio, piopio, piopio...’, como se dá às galinhas, ele ensinou a Adão a nomear as coisas, ele não lhe deu o Verbo, porque isso seria demais; ele lhe ensinou a nomear. Não é grande coisa nomear, sobretudo se, além disso, todos esses nomes são... (fim da primeira bobina) ...isto é, algo bem à proporção humana. Os seres humanos só pedem isto, que as luzes sejam suavizadas. A Luz em si é absolutamente insuportável. Aliás, jamais se falou de luz, no século das Luzes, falou-se de Aufklärung. ‘Tragam uma pequena lâmpada, por gentileza’. Já é muito. Já é até mesmo mais do que podemos suportar. Então, eu sou por São João e seu ‘No começo, era o Verbo’, mas é um começo que, com efeito, é completamente enigmático. Isso quer dizer o seguinte: as coisas não começam, para este ser carnal, este personagem repugnante que, no entanto, se deve chamar de homem médio, as coisas não começam para ele, quero dizer, o drama só começa quando há o Verbo na jogada, quando o Verbo, como diz a religião - a verdadeira - quando o Verbo se encarna. É quando o Verbo se encarna que as coisas começam a ir muito mal. Ele não é mais feliz de jeito nenhum, ele não se parece mais de jeito nenhum com um cachorrinho que balança o rabo nem tampouco com um bravo macaco que se masturba. Ele não se parece com mais nada. Ele é devastado pelo Verbo.
Então, eu também, eu penso que é o começo, é claro. O senhor me dirá que eu não descobri nada. É verdade. Jamais pretendi descobrir algo. Todos os expedientes que usei foram expedientes que fabriquei aqui e ali. E, sobretudo, imagine, tenho uma certa experiência desta profissão sórdida que se chama ser analista. E então nela aprendo assim mesmo alguma coisa. E direi que o ‘No começo, era a Verga’ tem mais peso para mim, porque vou lhes dizer uma coisa: se não houvesse o Verbo, que, é preciso dizer, faz com que gozem, todas essas pessoas que me procuram, porque é que elas retornariam se não fosse para, cada vez, tirar um sarro com o Verbo? Eu me dou conta disso sob esse ângulo. Isso lhes dá prazer, elas jubilam. Eu lhes digo, sem isso por que eu teria clientes, por que eles voltariam tão regularmente, durante anos, vocês se dão conta?! É mais ou menos isso. No começo da análise em todo caso, isso é certo. Para a análise, é verdade, no começo é o Verbo. Se não houvesse isso, não vejo por que a gente estaria nessa juntos!
Sr. X - (em italiano) A psicanálise entrou realmente numa crise irremediável? Será que as relações do homem não se tornaram tão problemáticas porque este real é tão invasivo, tão agressivo, tão obsedante... (continuação inaudível).
J. Lacan - Tudo o que temos de real até agora é pouca coisa perto do que... do que ainda assim não se pode imaginar porque justamente o próprio do real é que não o imaginamos.
Sr. Z - A questão tratava do papel da psicanálise hoje. O senhor dizia agora que há pouco que a psicanálise estabelecia a relação do indivíduo com o real. A questão era que, tendo o real se tornado tão agressivo, tão ‘obsessivo’, como dizia aquele senhor, não seria necessário, ao contrário, liberar o homem do real e, por conseguinte, a psicanálise não tem mais razão de ser.
J. Lacan - Se o real se torna suficientemente agressivo...
Sr. X - Cioé che il reale é diventato cosi distruttivo che l’única possibilità di salvezza è la sottrazione al reale, perché la psicanalisi a cessato completamente la sua funzione. Intérprete - A única salvação possível face a esse real que se tornou tão destrutivo...
J. Lacan - Seria banir completamente o real? Intérprete - E este senhor falou de esquizofrenia coletiva. De onde o fim do papel da psicanálise tal como foi apresentada.
J. Lacan - Esta é uma maneira pessimista de representar o que acredito mais simples: o triunfo da verdadeira religião. É uma maneira pessimista. Tachar a verdadeira religião de esquizofrenia coletiva é um ponto de vista muito especial, que é sustentável, tenho de convir. Mas é um ponto de vista muito psiquiátrico.
Intérprete - Este não é o ponto de vista de seu interlocutor; ele não falou de religião.
J. Lacan - Não, ele não falou de religião, mas eu acho que ele conflui de maneira surpreendente com aquilo de que parti, ou seja, que a religião, afinal de contas, podia muito bem resolver tudo isso. Não se deve dramatizar demais, no entanto. Deve-se poder se habituar ao real, quero dizer, ao real, naturalmente o único concebível, o único ao qual tenhamos acesso. Em nível do sintoma, ainda não é verdadeiramente o real, é a manifestação do real em nosso nível de seres vivos. Como seres vivos, somos roídos, mordidos pelo sintoma, isto quer dizer que, afinal, somos o que somos, somos doentes, é tudo. O ser falante é um animal doente. No começo era o Verbo, tudo isso diz a mesma coisa. Mas o real ao qual podemos chegar é por uma via muito precisa, é a via científica, isto é, as pequenas equações. E esse real, o real, se assim posso dizer, o verdadeiro real, é aquele justamente que nos falta completamente no que nos concerne, pois desse real, no que nos concerne, somos totalmente separados, por causa de uma coisa muito precisa que, embora jamais tenha conseguido demonstrá-la, creio que não superaremos nunca; nunca superaremos a relação entre esses falasseres que nós sexuamos como homem e esses falasseres que sexuamos como mulher. Aí, perdemos radicalmente os pedais; é mesmo isso o que especifica o que se chama geralmente de ser humano; sobre esse ponto, não há nenhuma chance de que isso dê certo algum dia; quer dizer, que tenhamos uma fórmula, uma coisa que se escreva cientificamente. De onde a abundância dos sintomas, porque tudo se liga a isso. É nisso que Freud estava certo ao falar do que chama de sexualidade. Digamos que a sexualidade, para o falasser, não tem esperança. Mas o real ao qual chegamos com pequenas fórmulas, o verdadeiro real, isso é outra coisa muito diferente. Até agora, como seu resultado, só tivemos engenhocas, ou seja: envia-se um foguete à Lua, tem-se a televisão, etc. Isso come a gente, mas come por intermédio de coisas que mexem com a gente. Não é por nada que a televisão é devoradora. É porque isso nos interessa, ainda assim. Isso nos interessa por um certo número de coisas totalmente elementares, que poderiam ser enumeradas, das quais se poderia fazer uma lista muito, muito precisa. Mas, enfim, a gente se deixa consumir. É por isso que não estou entre os alarmistas nem entre os angustiados. Quando nos saciarmos, pararemos com isso; e nos ocuparemos das verdadeiras coisas, ou seja, do que chamo de religião.
Sr. A. - (início inaudível) mas talvez haja ainda assim alguma coisa, é que é difícil de abordar o real, o verdadeiro real e não somente o símbolo, se não for uma rachadura - isto é, que o real é transcendente; para alcançar esse algo que nos transcende.... (inaudível) aí existem, de fato, as engenhocas e, de fato, as engenhocas comem a gente.
J. Lacan - Sim, quanto a mim, não sou muito pessimista. Haverá um tamponamento da engenhoca. Sua extrapolação, quero dizer, sua maneira de fazer com que o real e o transcendente convirjam, devo dizer que isso me parece um ato de fé, porque na verdade..
Sr. A. - Mas eu lhe pergunto o que não é um ato de fé!?
J. Lacan - É isso que há de horrível, é que continuamos na feira.
Sr. A. - Eu disse fé, não disse feira!
J. Lacan - Quanto a mim, é assim que traduzo fé. A fé é a feira. Há tantas fés, o Sr. compreende, fés que se aninham nos cantos, que, apesar de tudo, isso não se diz bem senão no fórum, isto é, na feira.
Sr. A. - Fé, fórum, feira, são jogos de palavras.
J. Lacan - São jogos de palavras, é verdade. Mas dou enorme importância aos jogos de palavras, o senhor sabe. Isso me parece a chave da psicanálise.
Sr. B. - (em italiano) J. Lacan - Eu não sou absolutamente um filósofo. Sr. B. - Una nozione ontologica, metafisica del reale...
J. Lacan - Não é absolutamente ontológica.
Sr. A. - Ele disse: o professor Lacan emprega uma noção kantiana do real...
J. Lacan - Mas isso não é absolutamente kantiano. É sobre isso mesmo que insisto, se há noção do real, ela é extremamente complexa e é, por essa razão, não apreensível, não apreensível de uma maneira que constituiria um todo. Parece-me uma noção inacreditavelmente antecipadora pensar que haja um todo do real; enquanto não tivermos verificado, creio que é melhor nos abstermos de dizer que o real é, seja no que for, um todo.
Recentemente li coisas sobre isso - na verdade, chegou-me às mãos um pequeno artigo de Henri Poincaré sobre a evolução das leis; vocês não conhecem certamente esse artigo, pois é impossível de encontrar; ele me foi dado, é uma coisa bibliófila; é a propósito do fato de que Boutroux se perguntara se não se podia pensar que as leis, por exemplo, podiam também ter uma evolução. Poincaré, que é matemático, arrepia-se ao pensar que possa haver uma evolução das leis, já que justamente o que o cientista busca é precisamente uma lei que não evolua.
Devo dizer que essas são coisas que acontecem por acidente, acontece por acidente que um filósofo seja mais inteligente que um matemático, isso é muito raro, mas aqui por acaso, Boutroux levantou uma questão que me parece totalmente capital. De fato, por que as leis não evoluiriam, considerando que pensamos um mundo como sendo um mundo que evoluiu? Por que as leis não evoluiriam? Poincaré sustenta categoricamente que o próprio de uma lei, quer dizer que, com uma lei, não somente domingo pode-se saber o que acontecerá na segunda, e na terça, mas que, além disso, ela funciona nos dois sentidos, ou seja, deve-se saber, graças a uma lei, o que aconteceu no sábado e também na sexta. Mas não se vê absolutamente por que o real não admitiria essa entrada de uma lei que se move.
É muito claro que aqui a gente se perde completamente, porque como estamos situados em um ponto preciso do tempo, como poder dizer o que quer que seja a respeito de uma lei que não é mais uma lei, em suma, segundo as palavras de Poincaré? Mas por que, afinal de contas, não pensar também que sobre o real podemos talvez um dia saber, sempre graças a cálculos, um pouquinho mais? Exatamente como para Auguste Comte, que dizia que jamais se saberia algo da química das estrelas: coisa curiosa, aparece um troço que se chama espectroscópio e sabemos muito precisamente coisas sobre a composição química das estrelas. Então, é preciso desconfiar, porque acontecem coisas, lugares de passagem absolutamente insensatos, que não se podiam certamente imaginar e absolutamente prever, que talvez façam com que tenhamos um dia uma noção da evolução das leis. Em todo caso, não vejo em quê o real é mais transcendente em relação a isso.
Acredito que é uma noção muito difícil de manejar. Aliás, até agora ela só foi empregada com uma extrema prudência.
Sr. X. - Este é um problema filosófico.
J. Lacan - É um problema filosófico, é verdade. Com efeito, há coisas, há pequenos domínios, onde a filosofia ainda teria algo a dizer. Infelizmente, é bastante curioso que a filosofia dê tantos sinais de envelhecimento, quero dizer que, bom, Heidegger disse duas ou três coisas sensatas; no entanto, faz muito tempo que a filosofia não diz nada de interessante para todo mundo. Aliás, jamais a filosofia diz algo interessante para todo mundo. Quando publica alguma coisa, a filosofia, ela diz coisas que interessam a duas ou três pessoas. E, além disso, há uma formação filosófica, isto é, que passa pela Universidade. Uma vez tendo passado pela Universidade, está acabado, não há mais nenhuma filosofia, nem mesmo imaginável. Alguém me atribuiu um kantismo agora há pouco, muito gratuitamente. Mas eu jamais escrevi senão uma coisa sobre Kant, é meu pequeno texto ‘Kant avec Sade’; para concluir, faço de Kant uma flor sádica. Ninguém, aliás, deu a menor atenção a esse artigo. Houve um sujeito que o comentou em algum lugar; nem sei se foi publicado. Mas ninguém nunca me respondeu sobre esse artigo. É verdade que sou incompreensível.
Sr. A - (em italiano) - Tradução: Minha imputação de kantismo é arbitrária. Como se tratava do real como transcendente, citei de passagem a ‘coisa em si’, mas não é uma imputação de kantismo.
J. Lacan - Eu me esforço é para dizer coisas que colem à minha experiência de analista, isto é, a algo de conciso, porque nenhuma experiência de analista pode pretender se apoiar sobre gente suficiente para generalizar. Tento determinar com quê um analista pode sustentar-se a si mesmo, o que comporta de aparelho - se posso me expressar assim - de aparelho mental rigoroso a função de analista; quando se é analista, em que corrimão é preciso se segurar para não transbordar de sua função de analista. Porque, quando se é analista, tem-se todo o tempo a tendência a derrapar, a deslizar, a se deixar escorregar de traseiro na escada de costas, e, no entanto isso é muito pouco digno da função de analista. É preciso saber permanecer rigoroso porque não se deve intervir senão de uma maneira sóbria e de preferência eficaz. Para que a análise seja séria e eficaz, tento estabelecer suas condições; isso parece entrar na seara filosófica, mas não é isso de jeito nenhum.
Não faço nenhuma filosofia; ao contrário, desconfio disso como da peste. E quando falo do real, que me parece uma noção totalmente radical para enodar algo na análise, mas não sozinha, há o que chamo de simbólico e o que chamo de imaginário, me seguro nisso como alguém se segura nas três cordinhas que são as únicas que permitem minha flutuação. Também a proponho aos outros, é claro, àqueles que desejam me seguir, mas eles podem seguir montes de pessoas que não deixam de lhes oferecer sua ajuda. O que mais me espanta é ter ainda tantas pessoas me acompanhando, porque não posso dizer que tenha feito algo para retê-las. Não fico no pé deles. Não temo absolutamente que as pessoas partam. Ao contrário, fico aliviado quando elas vão embora. Mas, enfim, àqueles que ficam sou, entretanto, agradecido de me retornar, de tempos em tempos, algo que me dá a sensação de que não sou completamente supérfluo naquilo que ensino, que eu lhes ensino alguma coisa que lhes presta serviço.
Foi muita gentileza de vocês terem me entrevistado tanto tempo.