quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Das lendas sobre Nise.




    Mesmo só tendo convivido com Dra Nise da Silveira quando ela já estava bastante idosa, na cadeira de rodas, pude desfrutar o prazer de ouvir de sua própria boca histórias deliciosas. Certa vez, com a Casa das Palmeiras abarrotada de estagiários, colaboradores e clientes, contou-nos com detalhes como foi a convivência com os colegas na Faculdade de Medicina da Bahia, onde se formou em uma turma com mais de cem alunos, sendo ela a única mulher. Pré-conceitos e paradigmas? Baixinha, nordestina, médica [imaginem uma médica, no Brasil, em meados da década de 20!] e com personalidade forte, foi sempre muito respeitada, na faculdade, fazia questão de afirmar. O mesmo já não ocorreu posteriormente, no Rio de Janeiro, onde viveu inúmeros confrontos e perseguições, por parte de "colegas psiquiatras". Na verdade, pior do que isso, Nise chegou a ser presa, acusada de ser comunista [e a querela se deu no interior do Hospital Psiquiátrico da Praia Vermelha-atual UFRJ]. Nise, de início, pensou em estudar Neurologia e jamais negou, em lugar algum, o amor e o respeito pela Obra de Freud. Até isso compartilhou com o amigo Jung, cuja obra dedicada às imagens do inconsciente tanto lhe inspirou por possibilitar desenvolver laços terapêuticos não-verbais com os pacientes esquizofrênicos. Discordar, para ela, fazia parte do processo dialógico comum aos que se espantam com o não-saber sobre a vida.
    No mesmo dia em que nos contou sobre os estudos na Bahia, fez questão de frisar para todos os presentes que o espanto (o Thaumázein dos antigos gregos], ou a capaciade de se espantar com as coisas, com o mundo, com as pessoas, com o desconhecido, era o que fazia um pesquisador da alma se manter vivo, com desejo de ir adiante e suportar o "não-saber". Nise não apreciava muito pessoas que associavam "o saber" com a "linguagem rebuscada". Desenvolvia uma técnica de falar aonde pouco se escutava a palavra "eu". Ao invés de dizer: "Eu penso que isso é assim, porque eu acho que....", dizia simplesmente: "Penso que isso é assim, porque parece que....". A diferença pode ser quase nenhuma para muitos, mas com o tempo percebia-se que, na verdade, tinha uma escuta notável, talvez por praticar nos detalhes a difícil arte de "desinflar o ego". Uma das variadas lendas que existem a seu respeito é a de que odiava Lacan [psicanalista e pensador francês que se notabilizou por, entre outras coisas, re-pensar Freud sob à luz da filosofia]. Nesta mesma noite - da narrativa sobre a faculdade de medicina - Nise, após perguntar quem, dos presentes na Casa, já havia lido Freud, tocou no tema que virou curiosa controvérsia para muitas pessoas depois: "Quem, aqui entre vocês, já leu Lacan?". Foi esta, exatamente, a pergunta...Diferentemente da pergunta anterior, sobre Freud [aonde aproximadamente metade do grupo acusou alguma leitura sobre], esta segunda pergunta sobre Lacan promoveu um longo silêncio. Creio que alguns de nós já havia lido [eu era um, mas havia lido pouco e tinha tido dificuldades de compreendê-lo], mas por motivos diversos, ou não, ninguém se manifestou. Diante do silêncio, Nise se pronunciou: "Nenhum de vocês leu nada de Lacan?...que pena [abanou a cabeça, reclinando-a ligeiramente para trás], porque eu li e não entendi nada, queria alguém que já tivesse lido e que pudesse ler junto comigo para ver se consigo entendê-lo [e soltou uma deliciosa gargalhada]. Nise adorava ler e era uma pessoa erudita [sem soberba], jamais odiaria um autor porque ele não sabia se expressar com clareza na escrita, ou porque não tinha uma escrita poética, ou porque, por algum outro motivo, não produziu um texto simples de ser lido. Seu grande fascínio era pelos afetos produzidos nas relações entre as pessoas, pelas boas idéias, pela criação com o "pensar o ser em constante movimento". Foi com Jung que encontrou eco para boa parte das idéias desenvolvidas nos ateliês de expressões artísticas - utilizados no tratamento da loucura - onde as imagens da alma surgiam em profusão, sob inúmeras formas de mandalas. E foi com Freud que aprendeu a amar os mistérios do inconsciente, além da necessidade de se livrar a "terapêutica do espírito", das mãos exclusivas da Medicina.