sábado, 18 de abril de 2009

Lacan e a Arte Zen do Psicanalista I




No primeiro parágrafo da abertura do Seminário I, sobre os escritos técnicos de Freud, Lacan parte do peculiar modo de agir de um mestre zen para caracterizar a epistemologia e, no desenvolvimento subseqüente, a prática da psicanálise. O presente artigo visa a investigar esta curiosa associação.

À primeira vista, abordar psicanálise e budismo em um mesmo texto pode soar estranho. Afinal, trata-se, de um lado, de um método científico ocidental do final do século 19, dedicado à investigação e tratamento da dor psíquica e, de outro, de uma tradição religiosa oriental muito mais antiga.

É essa intrigante combinação, contudo, que dá início à longa seqüência dos Seminários de Lacan. Com efeito, o primeiro Seminário, de 1953, começa assim:

“O mestre interrompe o silêncio com qualquer coisa, um sarcasmo, um pontapé. É assim que procede, na procura do sentido, um mestre budista, segundo a técnica zen. Cabe aos alunos, eles mesmos, procurar a resposta às suas próprias questões. O mestre não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la.”1

As histórias zen, em que se inspira esse parágrafo inicial, são conhecidas pelo seu caráter profundamente enigmático, cujo objetivo é romper com os padrões de pensamento em que se ancora a dúvida do perguntador. Assim como piadas, elas não podem ser explicadas nem compreendidas com o intelecto: são gestos, e apontam diretamente para a verdade.

Essa escola enfatiza a experiência direta de realização: “não se deixe levar por ouvir dizer, ler, nem pelo legado de outros, nem pela autoridade dos ensinamentos, nem por argumento, reflexão, método ou respeito a um mestre ou a uma tradição...”: a verdade só pode ser agarrada com as mãos nuas.

Qual seria, no entanto, a relação disso com a psicanálise, a ponto de Lacan iniciar um seminário sobre os escritos técnicos de Freud mencionando o zen? Será possível que esta fala tenha recebido destaque porque o psicanalista, em seu ofício, se identificava com o ofício de um mestre zen?

Voltemos ao texto. Lacan dizia que o mestre zen dá a resposta quando o discípulo está a ponto de encontrá-la. E prossegue assim:

“Essa forma de ensino [a técnica zen] é uma recusa de todo sistema. Descobre um pensamento em movimento – serve entretanto ao sistema, porque apresenta necessariamente uma face dogmática. O pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro reduzi-lo a palavras gastas. Nele, cada noção possui vida própria. É o que se chama precisamente a dialética.” 2

A transição do zen para o pensamento freudiano, portanto, acontece de forma direta, sem mediações, dentro de um mesmo parágrafo. O texto os coloca lado a lado; qual é, porém, a natureza desta relação? Trata-se de uma analogia, de uma simples aproximação ou de uma contraposição? E, afinal, de onde vem o interesse de Lacan pelo zen, que justifique utilizá-lo para introduzir os problemas da técnica?

A atração de Lacan pelo Extremo Oriente é razoavelmente conhecida. Sabe-se, por exemplo, que sua “busca do absoluto” chegou a conduzi-lo por duas vezes ao Japão, a primeira em 1963 e a segunda em 1971.3 Também chegou a planejar uma viagem à China, cancelada de última hora.

das grandes filosofias do mundo. Por quatro anos (entre 1969 e 1973), o psicanalista francês tomou aulas particulares com um sinólogo. Tendo em vista uma de suas preocupações centrais, a formalização da tópica do Real, Simbólico e Imaginário, ele mergulhou com seu professor no estudo do clássico fundador do taoísmo, o Tao Te Ching.

Segundo um mestre taoísta chinês, O Livro do Caminho [Tao] e da Virtude, escrito entre 250 e 350 a.C., na China, é “um texto profundo e ao mesmo tempo simples porque apresenta, por meio da linguagem, aquilo que se experimenta na sua ausência”.4 Daí o profundo interesse de Lacan.

Mas o foco dos estudos lacanianos recai em particular sobre a passagem que fala da origem das coisas: “o Tao de que se pode falar não é o Tao. Para compreendê-lo, é necessário abandonar a linguagem e os nomes. O Tao encerra o princípio de todas as coisas, mas ele mesmo não tem forma e nem corpo: é silencioso, eterno e imutável. O Nada é a essência do Tao, a fonte original de onde brotam o Céu e a Terra. Do Céu e da Terra brotam as inúmeras coisas. A ausência de intenção é necessária para se contemplar as inúmeras coisas; a aspiração, para contemplar a Luz. Nada e Existência possuem nomes diferentes, mas ambos provêm do Tao. O maior dos mistérios é o Tao, a fonte da criação das inúmeras coisas.”5 De acordo com Roudinesco, a noção de vazio extraída deste livro “será utilizada por Lacan para sua nova definição do real no quadro de sua teoria dos nós.” 6

Haveria, portanto, um papel de destaque, ainda que apenas nos bastidores, para a noção de um vazio taoísta neste momento da teorização lacaniana. A passagem da formalização da tópica do Real, Simbólico e Imaginário para o modelo dos matemas e dos nós, neste sentido, revela a busca de Lacan por um modelo teórico capaz de dar conta da transmissão do inefável.

A necessidade de pensar como se articulam campos para além da linguagem, isto é, o que não se expressa nem como imagem e nem como símbolo, conduz a tópica lacaniana a uma mudança de ênfase radical: o lugar determinante antes ocupado pelo Simbólico agora cabe ao Real.

Estas teorizações, ao mesmo tempo, revelam uma vocação positivista presente de modo cada vez mais nítido no pensamento de Lacan. Tratava-se da pretensão de constituir, apoiada na clínica da psicose, uma ciência exata do Real. Lacan, acima de tudo, não queria ser mal-interpretado.7

Neste ponto, avançamos até as formulações próprias à primeira metade dos anos 70, e aparentemente muito distantes do que em princípio nos interessa: o seminário de 1953, sobre os escritos técnicos de Freud. No entanto, apesar do intervalo de cerca de 20 anos, é possível apontar entre a abertura deste seminário, onde consta a referência ao zen, e esta teorização final, apoiada sobre elementos do taoísmo, importantes pontos de contato.8 Essas associações, particularmente em relação ao além-da-linguagem, à ruptura de sentido e ao vazio fértil, deverão ser reencontradas na seqüência do texto.

Antes de empreender esta breve excursão histórica pelos interesses de Lacan acerca das disciplinas orientais, em que terminamos por destacar a relevância da idéia de vazio em seu pensamento, nos perguntávamos qual a relação entre a técnica zen de apontar diretamente para a verdade e a epistemologia freudiana, já que, na abertura do Seminário, o psicanalista francês as coloca lado a lado.

Lacan parece julgar a técnica zen uma via privilegiada para introduzir o seu tema. Tomando em consideração o fato de que Freud jamais fez menção ao budismo, podemos supor que o zen oferece uma perspectiva singular de onde abordar questões fundamentais da prática da psicanálise? Vejamos.

Há decerto muita coisa concentrada naquele pontapé inicial do mestre zen. Ao iniciar uma palestra desse jeito inusitado, ele rompe o campo do convencional. Para Lacan, trata-se fundamentalmente de um gesto de recusa; ao se expressar de modo a rejeitar o que dele se espera, gera um efeito de ruptura; o vazio de seu gesto, porém, convida mais à plenitude do sentido do que à tagarelice de seus discípulos.

O comportamento desconcertante do mestre zen tem por objetivo romper com padrões de pensamento condicionados, isto é, com formas equivocadas, caducas, de constituir a realidade. Desaloja.

Ao mesmo tempo, trata-se da expressão direta de sua verdadeira natureza. O mestre zen é um ser liberto; ele liberta-se das convenções sociais rompendo com os limites impostos pelo ego, e com isso se torna capaz de enxergar para além dos conceitos e definições. A morte do ego o põe em contato com a natureza vazia da realidade convencional.

Lacan fala da técnica zen como uma recusa de todo sistema. Esta palavra, sistema, adquire um papel fundamental adiante, no mesmo texto. Ele afirma:

“O absurdo fundamental do comportamento inter-humano só é compreensível em função desse sistema – como o denominou de forma feliz Melanie Klein, sem saber o que dizia, como de hábito – que se chama o eu humano, a saber, esta série de defesas, de negações, de barragens, de inibições, de fantasias fundamentais, que orientam e dirigem o sujeito.” 9

Aí está o ponto. Trata-se de definir, no âmbito da clínica psicanalítica, a pertinência e o alcance da superação desse sistema, o eu. Este é o ponto nuclear, até mesmo, é o ponto de mira do texto que estamos examinando, para onde converge toda sua argumentação.

Sabemos que o pontapé de Lacan neste seu seminário, além de atingir Melanie Klein, dirigia-se de modo especial a um sistema de pensamento, a chamada Ego Psychology. O mestre da psicanálise francesa considerava esta corrente psicanalítica americana, ligada à figura de Anna Freud, uma versão domesticada, uma espécie de deturpação puramente adaptativa da peste em seu potencial subversivo, enraizada nas pulsões desestabilizadoras do id. Este é o caráter que ele procura resgatar, sob o signo do retorno a Freud.

É dentro deste espírito provocador que Lacan encerra sua introdução aos escritos técnicos de Freud, lançando mão de uma questão bastante incisiva e que, ao mesmo tempo, condensa admiravelmente as trilhas abertas pela sua fala. Ele pergunta aos seus ouvintes:

“O conjunto do sistema de cada um de nós – falo desse sistema concreto que não precisa já ter sido formulado para que esteja aí, que não é da ordem do inconsciente, mas que age na maneira pela qual nos exprimimos cotidianamente, na mínima espontaneidade do nosso discurso – está aí algo que deve efetivamente, sim ou não, servir, na análise, de medida?” 10

Examinemos com mais cuidado sua postura. Trata-se, em última instância, de atacar uma concepção de análise fundada numa relação entre analista e analisando de ego a ego. O entendimento da prática psicanalítica a partir de uma lógica binária, identitária, gera ilusões de complementariedade e de simetria e, neste sentido, alimenta expectativas de completude.

A relação analítica não é marcada por uma lógica da identidade, mas por uma lógica da diferença, da dissonância: a palavra do analisando, nos momentos de fato analíticos de uma sessão, não cumpre a função de comunicar, mas de revelar: a associação livre pressupõe um nível de tensão interna do discurso, um grau de abertura a rupturas de sentido imprevisíveis.11

No interior do modelo criticado por Lacan, não haveria espaço vazio, e tampouco abertura. A figura do analista tende a deslizar para lugares incompatíveis com a atividade analítica; trata-se, portanto, de um modelo que mantém e reforça o narcisismo e a onipotência, e encoraja a encarnação de ideais de ego.

O analista cujo eu serve de medida do que é o real solidifica-se em pura presença; ele se distanciará da concavidade própria à escuta analítica, uma presença em ausência. O analista acabará por se converter em uma figura fálica intensamente catexizada, à qual o analisando deverá se apegar com um afã masoquista.

Ao submeter-se à fascinação exercida pela personalidade do analista, o analisando sacrifica a construção da própria subjetividade. Permanece, por assim dizer, subjetivamente colado a seu analista, numa espécie de pacto vampírico. O conluio intersubjetivo assim constituído deverá engessar de modo irremediável a dinâmica transferencial deste tratamento.

Quando o paciente adota o analista que se oferece como referencial narcísico e identificatório, o par estabelece uma aliança perversa que conduz a subjetividade à centralidade no eu – a crença na existência última de um falo todo-poderoso – e portanto à obturação do vazio constitutivo da existência. Recusa-se a condição fundamental de desamparo do sujeito humano, a condição de perpétua insuficiência simbólica da linguagem frente às insistentes demandas pulsionais.

A relação transferencial sadomasoquista paralisa o analista no gozo com a anulação da singularidade do outro, enquanto este outro se submete passivamente. Uma dinâmica que revela a impossibilidade de sustentar a experiência-limite no abismo do além-da-linguagem, ali onde se esconde a face sombria da morte, da loucura e da inexistência, mas também toda possibilidade autêntica de criação, de sublimação, de espontaneidade, de singularidade e de genuína fruição. O eu eleva-se à condição de um ídolo fálico e ambos, na verdade, analista e analisando, acabam submetidos. O superinvestimento do ego é essencialmente resistencial, e tem o efeito de tamponar o vazio radiante de onde brotam as associações livres.

Trata-se, portanto, de uma verdadeira tragédia da servidão na psicanálise, como a denominou Joel Birman, forjada pela incapacidade de lidar com a angústia do sem-nome:

“... [o analista] lançará mão, inequivocamente, de seus ideais fálicos, de suas utopias de algibeira, para apaziguar sua angústia e a do analisando. Com isso, inevitavelmente promoverá um pequeno assassinato da alma, pois vai impedir que um sujeito possa se constituir a partir da experiência limite do desamparo. Empreender um pequeno assassinato implica, pois, fazer obstáculo para que um estilo singular de existência possa se constituir numa individualidade, fundado na experiência trágica da feminilidade.” 12

Qual, então, a posição do eu do analista numa análise para que ela não fique obstruída – de suas manias, de seus dogmas, suas crenças e valores, seus humores, suas coerências e incoerências, de seus hábitos de fala, de pensamento e de comportamento – de sua vaidade?


NOTAS

1 J. Lacan, O Seminário: livro I: os escritos técnicos de Freud, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1986 [1953], p. 9.

2 J. Lacan, op.cit., p. 9.

3 E. Roudinesco, Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 356.

4 W. J. Cherng, Introdução, in: Tao Te Ching: o livro do caminho e da virtude, de Lao Tse, São Paulo, Ursa Maior, 1996, p. 9.

5 Adaptado de W. J. Cherng, op. cit., p. 19.

6 E. Roudinesco, op. cit., p. 354.

7 Cf. E. Roudinesco e M. Plon, Dicionário de psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998, p. 502.

8 Cabe lembrar, como mencionado mais acima, que as idéias taoístas constituem parte fundamental do zen budismo. Elas compõem, ao lado das idéias confucionistas, o “elemento chinês” acrescentado ao Budismo original hindu que o permitiu assumir essa forma inédita de religião/filosofia: o budismo zen.

9 J. Lacan, op. cit., p. 27, grifo do autor.

10 ibid.

11 Cf. N. Silva Jr. “Modelos de subjetividade em Fernando Pessoa e Freud. Da catarse à abertura de um passado imprevisível”, in: M. E. C. Pereira (org.), Leituras da Psicanálise: estéticas da exclusão, Campinas, Mercado de Letras, 1998.

12 J. Birman, Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 46.


por André C. da Costa